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A partir da
interpretação da estratégia da Desconstrução proposta por
Derrida (1973;
2009; 2005),
adaptada para esta pesquisa com o uso dos instrumentos teóricos
descritos no Capítulo I, que evidenciam as artificialidades dos
discursos, tem-se a seguir, como um exemplo didático, a
Desconstrução do conceito do indivíduo “homossexual” com base
nas obras de Foucault (1999;
2006; 2008), Louro
(2000; 2013), Pinheiro e Queiroz (2012) e Spencer (1995).
O par de categorias
pretensamente opostas heterossexual/homossexual é o resultado de uma
construção sociocultural do século XIX (FOUCAULT, 1999). É um
exemplo que, uma vez desconstruído, pode ajudar a compreender a
grande importância dos mecanismos da linguagem para a criação, o
reforço, a veiculação e a manutenção de preconceitos. Para
iniciar, tem-se que perguntar: “o que é um homossexual?”.
É mediante o par de categorias
opostas heterossexual/homossexual, que tem sua construção apoiada
em um pressuposto logocêntrico religioso da moral tradicional, que
se estabelece uma hierarquia social em que se sobressai o indivíduo
heterossexual como portador de uma identidade ideal (LOURO, 2013).
Nesse par de opostos, representando o lado favorecido do par está o
indivíduo heterossexual, considerado como “normal”, ou seja,
enquadrado normativamente. Já representando o lado desfavorecido do
par está o indivíduo homossexual, tido como “anormal”, isto é,
fora da norma, ou, ainda, entendido como portador de uma “anomalia”.
O lado desfavorecido do par é empurrado para a margem da sociedade,
pois raciocínios discriminatórios, normalmente, inferem que
portadores de anomalias sejam inferiores e por isso sejam merecedores
de menos direitos.
Em um exemplo simples de
Desconstrução derridiana, segue a descrição de como a soma de
enunciados reforçaram um discurso que partia da pressuposição de
erro ou de pecado quanto à homossexualidade para culminar na criação
de mais esse binarismo do pensamento ocidental.
Essa
construção parte da apropriação pela ciência médica do século
XIX dos termos “homossexual” e “heterossexual”, usados pela
primeira vez pelo escritor austro-húngaro defensor dos direitos
humanos Kertbeny1,
em 1869 (SPENCER,
1995, p. 274). Kertbeny pretendia lutar contra o parágrafo 175 do
Código Penal Alemão, que condenava os praticantes do amor do mesmo
sexo à prisão com trabalhos forçados.
Segundo relata Louro (2000, p.
44):
[...]
O contexto no qual esses neologismos emergiram é importante: eles
foram desenvolvidos em relação a uma tentativa anterior de colocar
na pauta política da Alemanha (que em breve seria unificada) a
questão da reforma sexual, em particular, a revogação das leis
anti-sodomitas. Eles eram parte de uma campanha embrionária,
subseqüentemente assumida pela disciplina da sexologia, então em
desenvolvimento, de definir a homossexualidade como uma forma
distintiva de sexualidade: como uma variante benigna, aos olhos dos
reformadores, da potente mas impronunciada e mal definida noção de
"sexualidade normal" (aparentemente, outro conceito usado
pela primeira vez por Kertbeny). [...].
A
homossexualidade era vista, até então, apenas como um pecado, o da
sodomia, que qualquer
indivíduo masculino estaria sujeito a cometer.
Foi a partir do uso impróprio
da classificação comportamental de Kertbeny pelo médico psiquiatra
e neurologista alemão Carl Westphal (FOUCAULT, 1999), como forma de
categorizar indivíduos, que a homossexualidade passou a ser
classificada como uma anomalia.
[...]
É necessário não esquecer que a categoria psicológica,
psiquiátrica e médica da homossexualidade constituiu-se no dia em
que foi caracterizada – o famoso artigo de Westphal em 1870, sobre
as "sensações sexuais contrárias" pode servir de data
natalícia – menos como um tipo de relações sexuais do que como
certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de
interverter, em si mesmo, o masculino e o feminino. A
homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando
foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de
androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um
reincidente, agora o homossexual é uma espécie. (FOUCAULT, 1999, p.
42-43).
No artigo “As Sensações
Sexuais Contrárias” (WESTPHAL, 1870), o autor torna-se fundante do
discurso que define a homossexualidade como um desvio ou uma doença,
mediante uma sutil mudança no uso dos termos “homossexual” e
“heterossexual”, criados por Kertbeny, que passaram a ser usados
com sentidos antagônicos entre si; esses sentidos não existiam nas
publicações originais:
O
desenvolvimento desses termos deve ser visto, por conseguinte, como
parte de um grande
esforço, no final do século XIX e começo do XX, para definir mais
estreitamente os tipos e as formas do comportamento e da identidade
sexuais; e é nesse esforço que a homossexualidade e a
heterossexualidade se tornaram termos cruciais e opostos. Durante
esse processo, entretanto, as implicações das palavras mudaram de
forma sutil. A homossexualidade, ao invés de descrever uma variante
benigna da normalidade, como, originalmente, pretendia Kertbeny,
tornou-se, nas mãos de sexólogos pioneiros como Krafft-Ebing, uma
descrição médico-moral. [...]. (LOURO, 2000, p. 44-45).
A
partir de então, vários teóricos com visão moralista, a exemplo
do que fez Krafft-Ebing em sua famosa obra “Psychopathia
Sexualis”, de 1886
(PINHEIRO; QUEIROZ, 2012), começaram a buscar uma causa para a
homossexualidade na anatomia ou na história familiar de quem passou
a ser previamente considerado como “doente”. Dessa forma, a
criação no século XIX desse binarismo gerou posteriormente toda
uma epistemologia científica que herdou erros conceituais. O
discurso proibitivo religioso passou a contar, desde então, com o
apoio de conceitos científicos, aprimorando o “dispositivo de
sexualidade” (FOUCAULT, 1984; 1999), mecanismo tradicional de Poder
sobre a sexualidade. A epistemologia gerada a partir desse momento
histórico só começou a ser revisada a partir da segunda metade do
século XX (DERRIDA, 1973; DUPUY, 1996), a
fortiori, mediante um
processo de Desconstrução que continua ainda hoje.
[...]
A sodomia – a dos antigos direitos civil ou canónico – era um
tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico.
O homossexual do século XIX toma-se uma personagem: um passado, uma
história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também,
uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia
misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua
sexualidade. Ela está presente nele todo, subjacente a todas as suas
condutas, já que ele é um princípio insidioso e infinitamente
ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo, já
que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não
tanto como pecado habitual, porém, como natureza singular. [...].
(FOUCAULT, 1999, p. 43).
As duas palavras, que
originalmente seriam apenas termos técnicos cunhados por Kertbeny
para efeitos de estudo, passaram, por influência de um discurso
moralista de fundo religioso, a designar, entre meados do século XIX
e o início do século XX, o que era “normal” e a “anormalidade”.
Aos poucos, a bibliografia científica da sexologia passou a
relacionar esses comportamentos à existência de “categorias” de
pessoas, apresentadas como opostas e que representavam um
comportamento “certo” e um “errado”. Assim se construiu na
cultura ocidental mais essa “ficção” (LOURO, 2013, p. 43),
baseada em um par de opostos pelo qual uma “categoria” criada de
indivíduos passou, em função de sua expressão da sexualidade, a
ser vista como central na sociedade, em detrimento de outra categoria
criada que se tornou marginalizada em relação a esse “centro”
artificialmente construído.
Como
geralmente acontece com os binarismos, a eleição dos privilegiados
e dos subalternos ocorre ao mesmo tempo, resultando em uma interação
desigual entre as partes eleitas ou criadas, segundo FOUCAULT (1999;
2006)
servindo ao exercício do Poder sobre os indivíduos mediante o
discurso. O indivíduo central ou hegemônico se estabelece por meio
da eleição ou da criação de um conjunto de “outros”
depreciados.
Assim, o conceito tradicional de
pecado e da sodomia participou da construção do novo binarismo, que
ainda hoje promove a inferiorização de sujeitos reproduzindo a
característica tradição do pensamento ocidental do uso de
conceitos opostos, nesse caso, de base logocêntrica, devido ao fundo
religioso da proibição da prática homossexual, que também precisa
ser desconstruída e melhor compreendida dentro do próprio discurso
religioso, como será descrito em itens do Capítulo III.
Isso pode ser entendido em
outras palavras: o sujeito homossexual é uma criação sociocultural
desenvolvida a partir da interpretação de uma mera prática sexual,
pertencente à sexualidade humana como um todo; essa prática não é
definidora de uma identidade. O sujeito homossexual é uma criação
do discurso científico equivocado do século XIX, que foi
naturalizada na sociedade por sua reiteração. Nesse par, a
existência da definição do indivíduo heterossexual necessita,
para existir, da categoria analítica que foi considerada como seu
polo contrário, o homossexual. A Desconstrução torna evidente essa
interdependência e, consequentemente, sua artificialidade (LOURO,
2001, p. 528).
O que se compreende depois desse
breve exercício de Desconstrução é que a categoria “homossexual”
é apenas cognitiva; trata-se na verdade de uma ficção que molda
ainda hoje o imaginário popular a buscar as mais variadas
explicações para o que se convencionou chamar de “diferença”
que, nesse caso, na realidade, não existe. O que há é uma
sexualidade humana com múltiplas possibilidades de se expressar e
que é moldada pela cultura, limitada pelos discursos circulantes,
oprimida pelo Poder articulado ao Saber vigente e vigiada pelas
sociedades a fim de lhe dar as formas que se consideram adequadas em
cada cultura e em cada época.
Em face disso, quanto à
homossexualidade, afirma Borrillo (2010, p. 14):
Independentemente
de tratar-se de uma escolha de vida sexual ou de uma questão de
característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo
sexo, a homossexualidade deve ser considerada, de agora em diante,
como uma forma de sexualidade tão legítima quanto a
heterossexualidade. Na realidade, ela é apenas a simples
manifestação do pluralismo sexual, uma variante constante e regular
da sexualidade humana. [...].
A Desconstrução pode auxiliar,
pois, a tarefa de fazer professoras e professores, alunas e alunos a
enxergarem essa realidade, estimulando a compreensão quanto à
alteridade e trazendo possibilidades de pacificação para a
sociedade.
Isso passa, inevitavelmente, pelo
posicionamento político de educadoras e educadores, que também
precisam compreender como se dá a construção social heterossexista
para então terem a possibilidade de mudar a visão de alunas e
alunos sobre esse fenômeno linguístico, discursivo e social. Sem
essa mudança de visão, será muito difícil trabalhar seriamente
esse tema junto ao corpo discente.
1
A palavra "homossexual", publicada primeiramente em um
panfleto do médico e escritor austro-húngaro Karl-Maria Kertbeny,
é formada mediante a união de duas raízes linguísticas: homo
(do grego, “igual”) e sexual (do latim).
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REFERÊNCIAS
BORRILLO,
Daniel. Homofobia:
História
e Crítica de um Preconceito. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2010.
CAROLLI, André Luís. Desconstrução de discursos discriminatórios sobre a diversidade de expressão da sexualidade e da identidade de gênero expressos entre alunos e alunas do ensino médio. Dissertação de Mestrado em Educação, 199 p., sob orientação da Profa. Dra. Maria José de Jesus Alves Cordeiro - UEMS. Paranaíba, MS: UEMS, 2017.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
______. Déconstruction. In: DICK, Kirby; KOFMAN, Amy Ziering. Derrida. United States: Jane Doe Films, 2002.
______. A
Escritura e a Diferença.
São Paulo:
Editora
Perspectiva, 2009.
______. A
Farmácia de Platão.
São Paulo: Iluminuras, 2005.
DUPUY, Jean-Pierre. Nas Origens das Ciências Cognitivas. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4 ed. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
______. História
da Sexualidade I: A
vontade de saber.
13 edição. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
______. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.
______. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
LOURO, Guacira Lopes.O
corpo educado: pedagogias da sexualidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
______. (Org.) Teoria Queer – Uma Política Pós-Identitária para a Educação. Estudos Feministas. V. 9, n. 2, p. 541-553, 2001.
______. Currículo, gênero e sexualidade. O “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 9ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
PINHEIRO, Clara Virgínia; QUEIROZ, Cristiane Holanda. O encobrimento do erotismo na sexualidade contemporânea. Arq. bras. psicol. vol. 64, no. 2. Rio de Janeiro: Arquivos Brasileiros de Psicologia, 2012.
SPENCER,
Colin. Homossexualidade:
uma história.
Rio de Janeiro: Record (Coleção Contraluz), 1995.
WESTPHAL, Carl. Die conträre sexualempfindung, symptom eines neuropathischen (psychopathischen) zustandes. Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 1869-1870.
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